Ao Lento é um poema-narração criado para a exposição Alentar, Ao Lento, Alimento de Patrícia Geraldes, na Galeria Ocupa (Porto). Composição e voz de Nené, com sonoplastia de Frederica Campos.

A nudez vê-se

na distância

Vista dista
entre vista
veste dentro

Ver por dentro
habita
alargador
sem roubar lugar

Ela recolhe a casa.
Ela casa a recolha com o acolhimento.
Ela recolhe.
Ela acolhe.
Ela cansa a casa com os restos da sua recolha.
[O seu filho protesta. Que a criação da mãe reparte a bagunça.
A criadora conta que todo parto suja.]

Ela não tem horas mortas.
Ela não acredita no não-fazer.
Ela entrega-se ao animador descanso de pétalas e folhas em água fervida.
Ela saboreia a flora defunta.
Ela junta a flora defunta em frascos de tara perdida.
Ela aprecia o composto.
Ela intui que dos pequenos enterros se fará uma nova vida.


Ao Lento

Diz
Alento
Se disseres muito rápido
Alento Alento Alento
Alento Alento Alento
Alento Alento Alento

Nessa corrida da boca
encolhida a língua
atalha
desbasta
faz brotar
talento no alento

Cuidado
o apoio ao frágil
é um grande trabalho


Depois do abraço
alimentar
um corpo vivo
é o mais básico
dos cuidados

Somos
agregados
Somos
depósitos de amassos
Somos
ocorrências pontuais
no contínuo fluxo entre o novo
e o reconhecível

Fim sem fim
Um corpo nunca arrefece
nem se aquieta — mesmo
em ataúdes ou em câmaras frias.
Um corpo é simplesmente
uma soma
vestígio
de todos os instantes de mudança

Funções não cessam
Não vencem
Migram em novo querer

Não há perdas
no tempo

esperas
o brotar da vida persiste ante
a escura demora
chega devagar


Se desse para colher o tempo
em saquitos
amarrar todos
os segundos desprendidos
como sementes
para novas sucessões
não mais se diria
‘tempo perdido’
‘tempo gasto’

Cada saquito ferveria
uma essência para largar
o que um tempo solto sabe

Cada aspiração sorveria
entretempos
negaria o lesto
que segue desatento à minúcia
correr que desmembra os detalhes
que talha o significativo das coisas

Tardar o cuidado
Repara
Alentar
Alimenta
Ao lento

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