ESTAÇÃO ENCONTRO
9 de Novembro de 2019
Sociedade Martins Sarmento
Guimarães, PT

Um evento organizado por André Alves, Filipa Araújo, Max Fernandes, partindo da crónica “Protocolos de Encontro,” de Dom Tolentino de Mendonça.

Convidados: Carla Cruz, João do Vale, Juan Luis Toboso, Magda Henriques.
Colaboração dos alunos do 1º e 2º anos do Curso de Aartes Visuais da Universidade do Minho (Guimarães).

O texto de introdução, instruções das oficinas, guiões para as diferentes leituras foram compilados numa sebenta feita para os presentes (clicar para visualizar e descarregar a sebenta do evento Estação Encontro)

ESTAÇÃO ENCONTRO
15:00 Salão Nobre: Abertura de Estação Encontro e lançamento da publicação O que falta é amor.
15:50 Escadas: seguindo o perfume dos Amores (Perfeitos).
16:00 Claustro: oficina de escrita direta ao vivo.
16:45 Claustro: movimento de desaceleração temporal.
17:30 Cafetaria: merenda.18:00 Sala de leitura: uma ação sobre futuros.
18:30 Salão Nobre: mesa redonda “Protocolos de Encontro” e “Nunca é tarde demais”
20:00 Cafetaria: Repasto e celebração de encontro

Seguindo o perfume dos Amores (Perfeitos).
"Seguindo o perfume dos Amores (Perfeitos)" é um conjunto de pequenas crónicas escritas por André Alves sobre diferentes relações entre o fenómeno do amor e a flor amor-perfeito.
Leitura interpretada por Marina Cyrino.

Em tempos, os alquimistas acreditavam que o amor era mais do que um efeito de neurotransmissores no nosso corpo. Acreditavam que a química do amor existia além dos sentidos e que podia ser extraída de plantas, que tal perfume podia ser extraído dos Amores-Perfeitos. Não se preocupem, o perfume do amor é hipoalergénico.

O aroma dos Amores-Perfeitos é um aroma mágico. Ele vai e vem, vai e vem, como um baloiço, um inebriamento. E isso não é apenas uma metáfora, é uma propriedade desta flor do amor. O composto químico mais notável do perfume dos Amores-Perfeitos é a ionona. Depois de estimular os recetores olfativos, a ionona liga-se, “cola-se” a eles, deixando-os temporariamente entorpecidos e insensíveis. O cérebro simplesmente não consegue registar o perfume enquanto os receptores estão dormentes. Depois de um tempo, a sensibilidade volta, mas o cérebro não entende que é o mesmo perfume e regista-o como um novo estímulo. E é por isso que o perfume dos Amores-Perfeitos parece ir e vir, ir e vir, como uma vertigem, como sonhos luxuriosos, como o amor.

Amores-Perfeitos são símbolos de renascimento e do amor.
Mas, em servo-croata, Amores-Perfeitos dizem-se dia-noite.
Em persa, Amores-Perfeitos dizem-se violeta.
Em polaco, Amores-Perfeitos dizem-se irmão.
Em francês, Amores-Perfeitos dizem-se pensamento.
Em grego, Amores-Perfeitos dizem-se joguei fora.
Em inglês, Amores-Perfeitos dizem-se alívios do coração.
E só na nossa língua-mãe, Amores-Perfeitos dizem o que devem dizer.

Quem quer transformar a realidade? —oficina de escrita direta ao vivo.
“Quem quer transformar a realidade?” é uma oficina de escrita direta concebida por Max Fernandes. Escrita direta é um método de criação em vídeo que usa a palavra, o desenho, a mancha e a voz para formar um pensamento e/ou um gesto. A oficina segue quatro categorias (influenciadas conceitualmente porJerzy Grotowski): as formas de comportamento quotidiano mascaram; a ação absorve toda a personalidade do ator; dar e tomar; encontrar-se no outro.

Cada participante utilizará o seu próprio telemóvel nas máquinas propositadamente construídas para esta oficina e seguirá as indicações dos voluntários.

Estaremos destinados a ser apenas começos de verdade? — movimento de desaceleração temporal.

"Estaremos destinados a ser apenas começos de verdade?" é uma leitura dramatizada do céu à altura do início da performance e cujo guião foi escrito por Filipa Araújo.

Futuros. Novos Modelos Mentais, sociais, políticos, afetivos, epistemológicos…

"Futuros. Novos Modelos Mentais, sociais, políticos, afetivos, epistemológicos…" é uma ação que se desenvolve em torno da ideia de crise de imaginação e da necessidade de novos modelos de existência. Perante a atual perceção de futuro em riso, "Futuros..." busca reflexões de diferentes autores e de diferentes cronologias, como base para repensar e questionar: que futuros?
Leitura interpretada por João do Vale.

Protocolos de Encontro - uma conversa coletiva orientada por Carla Cruz, Juan Luis Toboso e Magda Henriques.

Nunca é tarde demais.
Uma leitura dramatizada com André Alves, Filipa Araújo e Max Fernandes.
Guião escrito por André Alves.

[Duas pessoas, P1 e P2, trocam mensagens aúdio entre si.]
(P1) - “Olha, tu nunca mais chegas? Isto deve estar para acabar não tarda nada. Estou a sair de uma coisa chamada “protocolos de encontro” que começou com a gente a comer umas maçãs pequeninas e depois estivemos a conversar. Foi muito fixe, mas ainda estou com fome!”
(P2) - “Estou a chegar. É desta chuva…”
(P1) - “Em vez de molha tolos, devia-se chamar atrasa tolos…”
(P2) - “Cala-te! E que mais?”
(P1) - “Ó pá… houve um momento tão fofinho… estivemos a cheirar o elixir do amor.”
(P2) - “Como assim?”
(P1) - “Olha, pelos vistos acredita-se, quer dizer, acreditavam os alquimistas, que o elixir do amor podia ser extraído dos amores-perfeitos. E então eles borrifavam o ar com esse perfume enquanto explicavam essas histórias.”
(P2) - “Ó meu, e resulta?”
(P1) - “Não sei. Se calhar apaixonei-me e nem notei.”
(P2) - “Ha ha ha ha. E isso foi agora? Se calhar quando chegar ainda sinto o amor.”
(P1) — “Não, não. Foi no início. Acho que ainda se sente alguma coisa. Mas para mim é mais a memória disto tudo. Foi logo a seguir à abertura. Começaram a falar do “O que falta é amor”, um evento que aconteceu em 2017. E depois ofereceram 100 livrinhos sobre o evento. Mas tenho um bocadinho medo de o abrir - parece que se vai rasgar. Mas se calhar isso é de propósito. E foi nessa altura que começaram a contar as historiazinhas sobre os amores-perfeitos.”
(P2) — “Estou a pensar que isso também é constrangedor por ser uma coisa coletiva: de repente apaixonavam-se todos uns pelos outros. Em vez da Estação Encontro deviam ter chamado ao evento Achados e Perdidos.”
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(P1) - “Ó pá, que riso! Mas isso do amor foi um momento entre. Dali fomos para o claustro e o fresco sossegou-nos. O fresco e a solenidade daquele espaço, não é?, íntimo e público ao mesmo tempo, e com aqueles testemunhos em pedra meio apagados. E depois, no meio delas, estavam umas geringonças de madeira com um visor que podíamos usar para fazer uma escrita direta, para desenhar sobre a realidade. Olha para as fotos.”
(P2) - “Essas maquinetas são muito engraçadas. No meio desse cinzento todo parecem coisas vivas. Sabes o que é giro: estou a fazer o mesmo no vidro da camioneta!”
(P1) - “É diferente, aí a paisagem do fundo não tem relação com o vidro.”
(P3) [intervém com um tom irónico: a inevitabilidade de ouvir as pessoas chatas que falam super alto ao telemóvel]. -“Vai-me desculpar mas não pude deixar de ouvir a sua conversa”
(P1) [Sem graça] - “hein...”
(P3) - “É que aquilo foi sobre conseguir o máximo de expressão através de ações mínimas. Com a mudança do olhar de trás da câmara para a frente da câmara, expôr-se a dizer o que se vê, expôr a sua pele ao contacto,… é sobre ter eficácia sobre as coisas. E isso é muito valioso.”
(P1) - “Fogo, que bonito.”
[P1 volta a agarrar o telemóvel para gravar mensagem para P2 a dizer] “Olha, estou aqui a falar com uma pessoa que também viu a Oficina de Escrita Direta, já te falo.” [E volta a conversar com P3 sem gravar.]
P1 -“Quer dizer, quem dera que a consequência da nossa ação fosse assim tão simples, não é? Como se se passasse logo do sonho, do modelo mental, à realidade. É preciso tempo, é preciso criar relações, é preciso recursos, evoluções, resultados…”
P3 - “Olhe que não sei.”
P1 - “Espere, grave em mensagem”
P3 - “Ah, sim, desculpe. Fiquei a pensar naquela frase da entrada "Emergência de tempos de urgência." Há situações de crise para as quais nos podemos preparar. Situações que se apoiam na questão do tempo, se há tempo ou se não há tempo. E claro, se também há recursos (mesmo que nada garanta que esses recursos vão funcionar). Claro que essas são
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crises que têm que ver com sobrevivência material e há muitos tipos de crise. E nenhuma me parece tão terrível como a crise da imaginação. Eu achava que aquela representação de pessoas fechadas em casas e cafés, fumando e bebendo ao longo das madrugadas de tempos de urgência, era uma espera pela chegada da altura certa para agir. Mas agora entendo essa espera como um aguardar por um novo despontar da imaginação, uma imaginação que não acontece só por reação, presa ao inevitável, mas além dele.
Bom, estou-me a desviar… em todo o caso, na questão da nossa capacidade de responder à urgência, tem que haver uma comunidade, não é? Tem que haver corpos que acionem uma diferença da ordem das coisas.”
[P1 recebe um novo aúdio de P2, em que ela termina a rir.]
(P2) -“Olá nova amiga.” [P1 e P3 desatam a rir.]
[Pequena pausa. P1 retoma.]
(P1) - “A espera forma uma comunidade... faz sentido! Há uma causa comum, uma urgência comum. Por exemplo, vemos desconhecidos a querer bater em alguém e metemo-nos ao bedelho. Somos uma comunidade? Não somos amigos, é certo, mas naquele momento temos um interesse comum que é a negação da agressão, e daí, passamos a ser um corpo de resistência comum. O agressor, ainda que essencial ao drama, fica fora desse corpo comum. Mas o seu lugar pode mudar, ele pode mudar de ponto de vista. Ou nós! Nós também podemos mudar e passarmos a agressores. Por isso as comunidades não são uma entidade fixa. São um movimento baseado em noções de valor: o que se valoriza? E isso é temporário também: tudo muda; não há comunidades fixas.”
[Pequena pausa para que P1 e P3 possam olhar a sala em volta, mas continuand a gravar.]
(P1) [P1 prossegue] - “Olha só para nós: nós estamos a ser uma comunidade crítica temporária.” [P1 e P3 desatam a rir. Chega novo aúdio de P2 a rir. ]
(P1) [dirigindo-se a P3 sem gravar] - “Ai que estranho nós termos rido antes dela. Agora o riso dela não tem graça nenhuma.”
[P1 e P3 voltam a rir.]
(P3) - “É como quando eu escrevo hahahaha no chat do telemóvel mas
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a minha cara está séria como um carapau.”
[P1 e P3 voltam a rir.]
(P3) [para P1] -“Grava aí.”
(P1) [grava aúdio].
(P3) - “Para voltar a assuntos urgentes. É surreal que se fale da atual situação ecológica como uma coisa do futuro. Ou até como um mero tema de interesse, e não como uma catástrofe de fato. Uma crise que é ecológica, mas também social e mental, porque não se trata apenas do desastre ecológico, mas da insustentável desumanização, de separação entre incluídos na sociedade e excluídos da sociedade. Com que base se decide essa exclusão ou inclusão? Com que base se decide o valor de uma vida?”
[Pequena pausa. Novo áudio de P2.]
(P2) - “Ora, na verdade, de um ponto de vista antropológico-biológico, nós sabemos que mais do que simplesmente desejar, nós precisamos fazer comunidades e ‘pertencimento’ para que os corpos mais frágeis possam sobreviver.”
(P1) [grava e envia aúdio] - “Ai, a gente já avançou. Já não estamos a falar de comunidade.” [P3 interrompe aceleradamente - mas o aúdio fica cortado a meio:]
(P3) -“Espera, estamos sim, senhora.”
(P1) [envia aúdio e diz a P3] - “Olha, não gravou o que tu dissseste. Vamos antes fazer uma chamada que este diálogo em pingue-pongue não nos ajuda.”
[P1 liga a P2.]
(P2) - “Estás a ligar?”
(P1) - “Estou e coloquei em alta-voz porque estamos a ficar uma comunidade desencontrada. [Voltando-se para P3] Repete lá.”
(P3) - “Lá!”
[P1, P2 e P3 riem.]
(P3) - “Estava a dizer que o tomar conta tem uma base biológica. Tu falaste da responsabilidade dos mais fortes perante os mais débeis. Esse é um valor ético que está na base de uma ideologia humanista. Mas esse compadecimento também é coisa instintiva: o sofrimento alheio
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despoleta a nossa rede de neurónios-espelho, porque o nosso cérebro faz-nos intuir inconsciente que quem ali está a sofrer somos nós. Aquele é o nosso sofrimento. A empatia resulta disso (e claro está, como disse, de códigos morais partilhados). Mas o código moral desta sociedade capitalista é voltado para a anestesia, não para a empatia.”
(P1) - “Uau, tu sabes muitas coisas? E sobre o cérebro e tudo. Por acaso és bióloga, psicóloga…?”
(P3) - “Não… trabalho na confeitaria.”
(P2) - “EIXXA-LEENTE!!! É isso aí. Toda esta conversa fala da crise moral do capitalismo: o que não é rentável não interessa. E esse é ainda o nosso modelo de participar, de ser nesta sociedade atual.” [Gera-se um silêncio incómodo.] “É não é…?”
(P1) - “Sim. Estava a pensar. Mas também estava agoniada, porque é mesmo isso.”
[P3 abana a cabeça em concordância.]
(P3) -“Olhem… a gente dizia que a comunidade é uma coisa temporária. Junta-se, dissolve-se; dura, não dura. Mas nós vivemos numa sociedade baseada numa metáfora espacial: estar dentro e fora. O poder neoliberal faz com que os incluídos não confiem nos excluídos, que os vejam como diferentes de si, estranhos, desagradáveis, como diferentes de nós e desmerecedores da nossa solidariedade. Esta desumanização de uns e não de outros, prova a crise social e moral que vivemos.”
(P2) - “Anestesia e perda da empatia é o código moral partilhado do capitalismo.”
(P1) - “E medo. Medo do outro, medo do isolamento e medo de ter menos. É ridículo, mas eu também sinto esse medo. E logo eu, que cresci com tão pouco; mas agora não sei se estou preparada para voltar atrás. Vocês estão preparadas para ter menos, para que os outros tenham mais?”
(P3) - “Não há outra forma. Não há volta a dar. A forma como a sociedade capitalista se desenvolveu deixou-nos sem ar, perdidos da vida, e vai-nos deixar sem vida.”
(P2) - ... [som de respiração rápida.]
(P1) - “Está tudo bem contigo?”
(P2) - “Sim… estou, quase, quase a chegar à Sociedade.”
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(P3) - “A questão é: que tipo de sociedade?”
[P1, P2 e P3 riem.]
(P3) - “Por mim podia ser uma sociedade com botões para desacelerar o tempo. Olhem… podemos desligar a função altavoz? Consigo ouvir-vos melhor se for à vez, em vez de tudo ao mesmo tempo.”
(P1) [diz a P3] -“Desliguei. [P1 recomeça a gravar aúdio.] Olha, falando em tempo, houve uma leitura encenada no claustro que falava sobre desacelerar tempo e sobre encontrar...” [P3 atropla P1 gritando no meio da frase]
(P3) -”Futuros.”
(P1) -“Caminhos... futuros... Começou no exterior e depois caminhou para dentro da Sociedade. E os presentes funcionavam como coro.”
[P1 envia aúdio.]
(P3) [diz a P1 a rir:] - “Grava, por favor."
(P1) - "Tá."
(P3) - "E depois desaceleraram ainda mais o nosso tempo com vinho quente e merenda.”
(P2) [Envia um aúdio com alguns sons de fundo] -“ Ui… … soa lindamente”
(P1) - “Estás a falar com alguém?”
(P2) - “Ó pá, não, já estou aqui dentro, mas perdi-me. Entretanto entrei numa biblioteca linda e estava a ler umas frases sobre futuro - nem de propósito - que estão pousadas sobre as mesas. Ia aproveitar para fazer um livro, mas estavam a dizer-me que isto fica aberto até ao fim da noite.”
(P1) - “Sim, anda ter cá e vamos depois.”
(P2) - “Ai eu quero voltar aqui. Mas sim, onde estão?”
(P1) - “Estamos no Salão Nobre - é em frente. Foi aqui que houve aquela conversa sobre os protocolos de encontro.” [P1 e P3 caminham para o exterior do Salão Nobre].
(P2) - “E eu desencontrada!”
[P1 e P3 riem novamente.]
(P2) - “Ah, esperem… já vos vejo.” [Caminha em direção ao grupo e diz em pessoa.] “Bom mais vale tarde que nunca.”
(P3) - “Depende, e se for tarde demais?”
(P2) - “Nunca é tarde demais.”